sexta-feira, 27 de março de 2009

FSSPX: especulando sobre a melhor solução jurídica

Uma coisa deve ficar clara de antemão: não sou especialista em direito canônico, não sou canonista; dito isso, confesso aqui minha grande admiração pela tradição canônica, especialmente até o advento do primeiro Código de Direito Canônico de 1917, promulgado por S. S. Papa Bento XV. A razão de eu estabelecer esse marco para minha admiração é que a codificação, ocorra ela no direito canônico ou comum, é nada mais nada menos do que um projeto racionalista-cartesiano.
Vou explicar isso melhor. Você somente empreende uma codificação se acredita piamente que esse documento, elaborado de forma sistemática, lógica, dedutiva, irá abranger ou conter, tal como numa garrafa, todo o direito vigente, canônico ou comum. Isso se deu justamente com o afamado Código Civil de Napoleão: a pretensão do Code era a de conter e abranger, de maneira lógica, racional e sistemática, todo o direito comum francês; o Code expunha, de modo inteligível, todo o direito francês até então espalhado, caoticamente, numa selva infindável de leis, decretos, rescritos, bulas, ordens, decisões etc.
Dentre outras conseqüências, uma das mais importantes é a de que a codificação implica a assunção - ou o abandono, dependendo do ponto de vista - de uma determinada filosofia referente às fontes do direito. À pergunta "qual a origem ou fonte do direito?" responde-se, sob a ótica da codificação, em uníssono: a lei estatal, ou seja, os textos com força legal editados pelo Governo central. Tradicionalmente, antes do advento do zeitgeist racionalista-cartesiano da codificação, a resposta seria deveras outra: a natureza (entendida aqui em sentido aristotélico, fique bem claro).
O direito fundado na natureza é confuso, ambíguo, muitas vezes obscuro; no entanto, é flexível, dúctil e capaz de dar as melhores soluções para os casos mais intrincados, complexos e inusitados, além de evitar, por sua própria estrutura, a concetração excessiva de poder. Por sua vez, o direito legalista-racionalista é mais claro, objetivo e seguro (e, diga-se, nesse ponto da história, nem essas qualidades o direito cartesiano consegue entregar mais); no entanto, é inflexível e muito pouco adaptável, não conseguindo formular boas e justas soluções para os chamados "hard cases" (e daí a constante necessidade da intervenção dos juízes nas leis para refazer ou continuar o trabalho do legislador), além de propiciar uma formidável e inédita concentração de poder nas mãos do Governante da hora.
Na minha modesta opinião de não-especialista, a Igreja, ao embarcar na onda da codificação, abandonou, injustificadamente, uma venerável tradição milenar de direito canônico fundado na natureza das coisas, tradição esta que evocava as melhores contribuições intelectuais da Igreja: uma filosofia e visão realista da existência e da realidade em oposição a todos os idealismos. A Igreja dobrou-se, pelo menos no que se refere ao direito, ao idealismo cartesiano, deixando de lado o realismo sadio da escolástica (Sto. Tomás) e, como conseqüência, o realismo do direito canônico tradicional.
(continua)...

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